Igreja cristocêntrica ou pastorcêntrica?

Igreja cristocêntrica ou pastorcêntrica?

O ministério pastoral e o sacerdócio universal

Na Igreja de Cristo, pastores e pastoras são chamados(as) a servir; os leigos e as leigas, a empregarem seus dons no exercício de ministérios. É a união de todas as pessoas, nas diversas funções, que fortalece o corpo da Igreja. A Reforma de Lutero não apenas nos lembra que podemos chegar a Deus sem intermediários, como, também, que todas as pessoas fazem parte da missão. Este é um grande privilégio e, também, uma grande responsabilidade.Dos(as) clérigos(as), espera-se que liderem com humildade e altruísmo e dos leigos(as), que assumam o compromisso com a obra do Senhor. E que cada um seja o suporte do outro, em amor (Ef.4.2).É o que nos diz o Rev. Francisco Rodés, pastor da Fraternidade das Igrejas Batistas de Cuba, em artigo publicado na revista Signos de Vida, do Conselho Latinoamericano de Igrejas, CLAI (nº 41), que reproduzimos parcialmente a seguir.

Durante a Idade Média havia se solidificado a separação: de um lado o religioso, dedicado ao culto e à oração; de outro, o secular, ocupado nas tarefas mundanas. A esta separação correspondia uma teologia que fazia distinção entre o material e o espiritual. Enquanto uns estavam num nível inferior --- dedicados a questões temporais e imperfeitas; outros, num nível superior, na esfera das coisas eternas e santas. Daí se conclui que essa diferenciação fazia a uns dependentes dos outros no que diz respeito ao acesso aos símbolos religiosos. Uns eram clientes dos serviços religiosos, outros eram provedores, administradores exclusivos dos favores divinos. Aí está a raiz do grande poder da Igreja na Idade Média, poder que chegou a influir em todas as esferas da vida política e cultural de forma determinante.

Lutero deu um passo decisivo ao deixar a Ordem dos Agostinianos, ao se casar com Catarina e renunciar à sua condição clerical e, mais tarde, ao negar os sacramentos à exceção do batismo e a comunhão. Já não temos outro mediador além de Jesus Cristo para estabelecer nosso relacionamento com Deus, afirmava Lutero. Portanto, não necessitamos de sacerdotes. Outro dos grandes líderes da Reforma, Calvino (que era leigo) elaborou com mais contundência teológica a doutrina do sacerdócio acessível a todos os crentes, sem distinção, fazendo com que as atividades manuais, como a de um simples sapateiro, possam se converter em um serviço a Deus. É o que ele chamou de “santificação da vida cotidiana”. Desde então, todos os evangélicos repetimos com certo orgulho este princípio protestante do sacerdócio universal de todos os crentes.

Ressurge o clericalismo protestante

Contudo, uma coisa é o que expressa a doutrina e outra o que se experimenta na vida real. Na verdade, o clericalismo não morreu: sobreviveu sobre outras bases. Abriu-se uma nova fonte de serviços à religiosidade, a dos dispensadores da doutrina correta, a dos que manejam a arte de pregar a Bíblia e animar a fé. O conhecimento da Bíblia requeria dedicação, estudos em seminários e universidades. O ministro protestante recupera muito da auréola de santidade do antigo sacerdote; sua autoridade se estabelece nas novas estruturas das igrejas, que são controladas pelos novos clérigos, e o sacerdócio universal dos crentes converte-se em outra página borrada do ideário protestante.

Naturalmente não há nada contra o profissionalismo. Afinal, todo o desenvolvimento nos campos da cultura e do saber ocorre como resultado da consagração, em áreas específicas, de pessoas com vocação. A Igreja necessita de profissionais, de músicos, de teólogos, de professores e pregadores, e damos graças a Deus por essas pessoas. O problema consiste no exercício do poder na igreja, quando por conhecer um pouco mais de teologia ou ter mais habilidade para falar em público, exercemos estes dons não para servir, mas para erigirmos uma autoridade controladora sobre os demais. Assim surgem as igrejas pastorcêntricas.

Que são as igrejas pastorcêntricas?

São as igrejas nas quais as decisões emanam da autoridade do pastor. Os membros acostumaram-se tanto a que a voz de Deus seja ouvida apenas do púlpito, que lhes parece um sacrilégio diferir das idéias de seu pastor ou pastora. Seria como uma deslealdade, um pecado grave não estar de acordo com ele ou ela. Em muitos casos, o(a) pastor(a) que se vê a si mesmo(a) como revestido(a) de uma unção exclusiva, sente-se tão afagado pelo aplauso da congregação, que se desenvolvem imperceptivelmente ostraços de egocentrismo que conduzem ao autoritarismo. Estes são os resquícios da antiga separação entre clérigos e leigos, alimentados pela própria tradição da Igreja. Isto o escreve quem tem sido pastor por mais de quarenta anos, pelo que o faço sem vontade de denegrir um chamamento que reconheço como divino e uma vocação que viverei até o último dia da minha vida.

Não é estranho, então, que a linguagem mais espiritual, a voz mais carregada de bendição converta-se em disfarçada manipulação aos demais para impor critérios próprios. E tudo ocorre em uma atmosfera de piedade e devoção.

Os pastores(as) assim transformados por este autoritarismo começam a falar de “minha igreja”, “meus membros”, “eu não permito em minha igreja”, “tenho um membro”, como se a igreja fosse de sua propriedade.

O modelo cristocêntrico de Igreja

Isso dista muito do modelo cristocêntrico de Igreja no qual Cristo é o cabeça, a autoridade, e os membros do corpo, todos iguais na importância, contribuem cada um com seu dom para o crescimento de todo o organismo. Paulo nos adverte que “o corpo não é um só membro, mas muitos” (1 Coríntios 12.14). (...)

Um texto em que se baseia uma saudável eclesiologia é Efésios 4.11-12. “E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo (...).” Estes diferentes serviços oferecidos pelos pastores(as), evangelistas, etc., aperfeiçoam os “santos”, a igreja toda, para a obra do ministério. Quer dizer, estes dons não são para auto-engrandecimento, mas para ajudar uma igreja conscientee preparada em seu ministério. A Igreja é protagonista principal, o corpo de Cristo, tem uma missão de Deus no mundo.

Por isso é tão importante uma tomada de consciência dos mecanismos psicológicos e inconscientes pelos quais uma pessoa institui para si um poder controlador sobre uma comunidade crente. Porque, então, o sacerdócio universal de todos os crentes não passa de um slogan sem validade prática alguma. Uma igreja na qual a congregação não tem voz própria, que não faz mais que repetir a de seu pastor, e o dizemos com todo o respeito, é uma comunidade pobre, imatura e dependente. O modelo bíblico é o de uma comunidade participativa, rica em aceitação da diversidade de critérios e personalidades e unida pelo espírito de amor e de paz que nos ensinou nosso Mestre, quem, como sabemos não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida pelos perdidos.

Novos modelos participativos

A raiz de tudo o que vimos discutindo tem que ver com a questão prática de como se tomam as decisões na comunidade crente. (...) Todos os membros têm a mesma possibilidade de ser ouvidos, inclusive os mais recentes, os mais jovens, os mais humildes? Penso que o que Jesus fez levando um menino no meio do grupo de discípulos foi nos mostrar um novo modelo de comunidade. Um menino carece de poder, de autoridade, de experiência. Porém, nele também há a sabedoria de Deus e a disposição para aprender que os mistérios de Deus somente Ele pode concedê-los. Uma igreja evangélica na tradição da Reforma deve aprender a por o menino no centro, e a abrir-se ao que Deus fala na comunidade. Este é o verdadeiro sentido do sacerdócio universal de todos os crentes.

Francisco Rodés

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